Parte II
(A Ilha)
Tem vezes que fico por aqui, horas a fio, as imagens passando pelo meu cérebro à velocidade da luz, as palavras exactas na ponta dos dedos, na folha, toda em branco, apenas a certeza de que havendo tudo para dizer, na verdade não é hora das letras dançarem para os meus olhos sedentos de as acompanhar nessa melodia que é contar e falar coisas sobre a vida.
Uma música de saudade e incompreensão preenche o ambiente da sala e os meus pensamentos mais profundos, aqueles que permanecem eterna e exclusivamente nossos, direccionam-se de forma teimosa para as recordações que tento apagar, passados distantes e amores recentes, vidas passadas na certeza de que afinal, o presente e futuro, são variáveis que diariamente tentamos dominar mas que se esgueiram teimosamente por entre a incerteza das decisões que tomamos e as suas consequências.
De contradições percebo eu….percebo não! Eu afinal vivo, alimento-me, visto-me e ando em cima delas…Lembro-me, que ainda jovem imaginava 2010 como um ano demasiado longínquo para fazer parte dos meus planos de vida…hoje, às portas de 2011, buscando recordações e sentimentos de tempos tão divergentes, percebo o quanto nos enganamos ao projectar os anos futuros, o quanto somos ingénuos ao pensar, muitos anos antes, que muitos anos depois, cansados da vida, dos problemas, dos casos não resolvidos, da poluição inerente à velocidade com que o relógio conta o tempo, o nosso coração, cansado de pulsar dentro de nós, simplesmente pare e resignado se transforme de matéria em espírito.
Endireito-me na cadeira e vejo a folha em branco. Lá fora o sol esconde-se, o dia escurece rapidamente e em poucos minutos uma chuva torrencial desaba sobre a cidade. Bebo uma taça de vinho, a melodia da saudade paira no ar e as notas dançam à frente de mim como se de um desafio se tratasse. Acendo mais um cigarro, olho para o cinzeiro a abarrotar de uma imensidão de pensamentos que não consigo fixar no espaço e imagino as águas da chuva a inundarem a cidade e a encherem os rios, mesmo que eu mande garrafas com sos para todo o mar, de certeza que as palavras nelas contidas, nunca chegariam para derrubar a fronteira entre o vazio absoluto e a minha incapacidade real de perceber que se o universo se desintegrasse por falta de lógica, ainda assim a beleza do teu sorriso iria ser suficiente para perceber que afinal tudo valeu a pena – o chilrear dos pardais, as cores, infinitas do arco íris, a imensidão dos oceanos, o desabrochar das rosas, o dourado do nascer do sol para lá das montanhas, e a pureza do primeiro grito para a vida de um ser recém-nascido.
A chuva aumenta de intensidade e o barulho da água a bater no chão mistura-se com os sons da voz melancólica da cantora, clamando a saudade do seu amor através da memória da carne. O meu pensamento voa e de repente o teu sorriso soa pela primeira vez nos meus ouvidos. Busco-te rapidamente porque algo mudou em mim naquele momento…como se o meu universo de repente se desequilibrasse, a gravidade deixasse de existir e eu fosse condenado, exactamente a partir daquele milésimo de segundo, a andar por aí, vadio e eternamente a procura dele. Então, o feitiço da ilha, preso no meio do oceano a milhões de anos por entre as pedras solidificadas do fogo de revolta contra as profundezas da terra, liberta-se e explode no teu olhar, atravessa a minha carne e gruda-se nas minhas entranhas. Sorri, o meu olhar atravessou uma vida inteira para se cruzar com o teu e, através do universo castanho-escuro dos teus olhos, reparo que a ilha era vida verde em mar azul-marinho e que o tempo suspendeu o clicar do ponteiro do relógio algures pendurando numa parede. Por alguns momentos fomos só nós, eu e tu, a interrogação pairando e a certeza de encontros passados para lá das fronteiras da existência humana, tal como a conhecemos.
Olho pela janela e vejo as águas da chuva arrastarem os pecados da cidade. Não interessa o que procuram ou para aonde vão…interessa sim que agora arrastam consigo a minha folha em branco que rapidamente se desfaz em mil pedaços e se transforma também ela, em água, para alimentar as entranhas da terra.
Quem sabe, um dia, quando os nossos olhos se cruzarem outra vez na ilha do feitiço, exactamente naquele momento, chovam todas as palavras que a folha em branco leva agora consigo…
DC
DC